quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Nós, pormenores da vida - I

Caminhamos jovens, velhos,
lamentos de sutilezas
pra apagarmos às tristezas
os cacos dos vis espelhos,
pedaços de carne viva,
segredos de alma cativa
que a Morte nos arquiva
pra sermos memórias fúteis
em lavas de tempo, inúteis
por sabermos que a vida
é uma visão esquecida,
boca trêmula que grita
contra a dor que nos agita
entre os dedos de uma fera
que devora à noite antiga
a ilusão de uma espera
com a raiva da cantiga
que todo o vento mastiga
para em sonhos de verdade
cuspir o fogo da idade
e sorrir à mão amiga
que afaga a espiga
e nos aquece a vontade
de sermos tudo o que somos
no sumo claro dos gomos
depomos.

Assinado por Renato Cresppo.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Nos pormenores da vida - I

Estava sentado a um canto de um pequeno café, junto do mar. Já eram minutos passados das nove horas da noite. Não me apetecia jantar. O coração batia-me com a força das marés vivas, socando com violência a pequena praia que semeava o café. Os meus olhos que atravessavam as janelas forradas de pó, fuzilavam o horizonte como se fossem um Goya transtornado. Desenhei um rosto no vidro da janela. Um rosto sem olhos, sem boca, um rosto lixado pelo esterco e pelas garras afiadas do meu cérebro, afogueadas que estavam pelas pulsões do seu lixo.
Uma atendente magricela abeirou-se em minha mesa e perguntou-me, delicadamente, se desejava alguma coisa. Investiguei a minha fome que, rapidamente, descobri ser nenhuma, mas, mesmo assim, pedi um pequeno prato de frios e um copo do vinho tinto da casa. Momentaneamente, apeteceu-me apanhar uma bebedeira e, depois, estender-me na areia molhada, untando-me com a vingança de uma razão apodrecida.
A magricela trouxe-me os frios e, eu, senti-me, subitamente, enjoado. O salame era hediondo, o pastrame, insosso, e as azeitonas até pareciam boas. Cretinice, a minha, por me ter lembrado de comer naquela espelunca. Sobrou o vinho que me estancou os palavrões murmurados entredentes. Afundei-me, nela, sem me preocupar com os resultados. Bebi um café e paguei a conta. Uma fortuna por uma provocação daquelas. Saí do café e fui, de imediato, lambido por uma língua de ar frio. Tinha urgência em acalmar as baforadas violentas que boiavam no meu corpo. Que se lixasse o frio, e, sem pensar em mais nada, despi-me e mergulhei nas águas geladas do mar. O corpo vibrou como se fosse um caniço ao vento. Nadei como uma enguia e, instantaneamente, a depressão que me afogava o cérebro diluiu-se como a espuma do mar. Aproveitei o impulso de uma onda maior e deixei que o corpo rebolasse pela areia, como se a minha nudez se estendesse sobre um colchão de plumas. Levantei-me, abastecendo o corpo com os suores revoltados de uma vida sem afinações. Vesti-me, subi a pequena escada que ligava a praia à rua e seus inúmeros pontos de autobus. A noite era um calafrio nos olhos das minhas ventas e o vento empurrava-me para Sul, quando devia seguir para Norte. Que destino sem norte, pensei eu, rasgando a noite com os faróis de um tempo que nada me dizia. Que destino em que só a morte, cogitei eu, rasgando os dias com os faróis de um tempo que tudo se despia – e despedia.

Escrito por Renato Cresppo na madruga do dia 18 de Dezembro de 2019 (02:50:12)


segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Nas teias de uma alucinação delírica - I

Um voo vertiginoso. Abraçou-se às limas do tempo e, tal como um trapezista sem rede, protegeu os malabarismos de uma execução arriscada e entregou-se às mãos do depravado que era quando, na aldeia em que vivia, seguia os carreiros das formigas carregando, com elas, a reserva alimentícia do inverno castigador. Entretinha-se, com laivos de cinismo, a depositar, nos seus caminhos, obstáculos que lhes dificultavam os percursos até às bocas dos seus refúgios. Adorava asfixiar-lhes as bocas e dava pulos de satisfação ao vê-las ensandecidas. Se lhe apetecia, fisgava uma e colocava-a sobre a sua palma da mão. Deixava-a correr pelo seu braço e, em um acesso de raiva incontida, dava-lhe uma dentada e tomava-lhe o gosto. Não gostava. Cuspi-a e volvia de regresso a casa e ao regaço de seus pais. Que pais! Amavam-se no campo, em casa, a qualquer hora do dia e da noite, sem que nunca lhe tivessem dado a companhia de um irmão. E para que desejara ter um irmão se a cor das borboletas eram alvo especial dos seus olhos e da coleção que conservara, às escondidas, em um esconderijo, no conforto do palheiro. Ah! como delirava espetar-lhes um alfinete no corpo sensível e vê-las debaterem-se pela liberdade perdida. Que belo arco-íris ele colecionara! A casa era rodeada por uma bela chácara onde havia de tudo o que a imaginação esculpia. Gostava de caminhar até ao riacho onde tomava gostosos banhos de água gelada. O frio toldava-lhe o discernimento. Vingava-se, atirando pedras aos peixes que por ali cirandavam, quando não apanhava um e o devorava como se fosse triturado pela fome de um lobo esfomeado. Se o dia o torturasse com a preguiça, dormia no palheiro. Acordava à noite, saía de casa por entre os gemidos afogueados dos pais, ia ouvir as rãs e se o temporal lhe abanasse as idéias encostava-se a uma rocha e delirava com o bailado dos relâmpagos e o ritmo acelerado dos trovões. Adormecia quando o sol despontava e sonhava com as trepadeiras do medo. Acordava aflito e desenhava na terra a figura dos pais.

Assinado por Renato Cresppo


terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Oblívio no engano V - Cancioneiro Póstumo

Sou um calafrio de dias póstumos. Os meus pensamentos são riscos diários, soprando as metáforas do olhar que transcendem o limiar do absurdo. Cada passo que dou sob os concertos humanos da cidade, revelam a esfinge deste corpo que partilho com as sombras da idade. Ser-se jovem para não se ser velho é um prazo que se valida ao custo de vida. Sob os mantos do silêncio componho sonatas de Outono que o Verão derrete para não decifrar esta ousadia de escrever desafios à docilidade do tempo que nos costura com os pregões da conformidade inapelável. Por muitas perguntas que crave, neste exílio permanente, à suavidade embrionária dos sorrisos complacentes, não lhes ouço os sussurros lancinantes, nem a musicalidade das lágrimas blasfemas. Os dias são dias, as noites são noites, e nada se ouve no lento deslizar das nuvens que são promessas de vãs fertilidades. Tudo é efêmero. E efêmero serei eu, nas águas ligeiras de um rio sem fronteiras. A Morte é um cancioneiro de pássaros, perdidos na combustão do tempo. Assim, eu voarei.

Assinado por Renato Cresppo